quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Literatura



Pequeno Diário de um Morto


No último voo da minha vida, não sabia que era o último, por isso voei não sabendo que morreria naquele dia. A subida do avião foi tranquila, nada de estranho se suspeitava que aconteceria, o piloto, o co-piloto e as assistentes de bordo, todos estavam no ponto.

O piloto era um semi-velho barbudo, que pelo seu respirar dava para perceber que já estava acostumado a fazer voos de longa duração, principalmente para as Antilhas. O co-piloto era um jovem moreno, que não era branco, negro, e muito menos mulato, ele era ele mesmo, de uma raça solta como os cães vira latas que ululam pelas cidades periféricas buscando os ossos de cada dia que o homem na sua ingenuidade deita nos contentores de lixo. As assistentes de bordo eram algumas moças lindas, os nomes delas não me estão nas clareiras da mente, mas elas eram finas e dengosas, dava prazer ouvi-las pronunciar qualquer palavra em qualquer língua, mas a pena de tudo isto é que elas estavam marcadas para morrer naquele voo comigo.

O céu estava nublado, e as gotículas de chuva iam subindo amorosamente pelo corpo negro da terra, e foi neste cenário de tempestade pobre, que o avião subiu rumo a minha morte. A subida foi tranquila, o monstro metálico aos poucos ganhava consistência no centro da gravidade. Enquanto o avião subia tive a sensação de ser um pássaro, aliás! não tive sensação de ser pássaro coisa nenhuma, mas imaginei a liberdade que os pássaros sentem quando voam, infelizmente essa minha raça de homem só sabe voar a electricidade, a mecânica e a todas essas coisas como vapor que teve o seu primeiro suspiro na revolução industrial.

Eu estava sentado na classe executiva, embora não lembrasse que tivera posses em vida, talvez fora um empresário de sucesso, um cantor, sei lá, mas creio que era alguma coisa útil quando estava vivo, porque só pessoas úteis sentam na classe executiva a bordo de uma embraer 99. O corpo chovediço de lá fora, fumegava as janelitas da aeronave, depois de uma ampla solidão a chuva se fez acompanhada de trovoadazinhas, que foram crescendo, crescendo, como cresce um feto no ventre da mulher, e aquele crescer e começar era o princípio e o fim de mim. Foi depois disto que uma pequena turbulência se fez primeiro miúda, depois mulher, e o início do pânico. O comandante tentava controlar os passageiros, que na verdade nem existiam, eu estava só, com o piloto, o co-piloto e as minhas lindíssimas assistentes de bordo. O grito era meu e delas, nossas vozes se entrecruzavam numa paixão obscena, nossos corpos se juntavam no medo do tranquilo silêncio que se chama morte.

O avião caia em reflexos lentos, no meu pânico, brindei comigo mesmo o meu último suspiro. Das janelitas do avião vi o sol se despedido de mim, embora chovendo, além do sol vi os rostos de meus amigos e de todos meus familiares, e uma lágrima desceu dos meus olhos e o fim dela já não sei. A medida que o avião ia caindo mais pena tinha das minhas assistentes de bordo, tão lindas e ao mesmo tempo tão mortas. No meio do trajecto da queda, nem um grito, nem um suspiro, acabei me conformando com o destino que Deus me concedera nesse dia. As últimas palavras que ouvi, eram do piloto que buscava coragem de sei lá onde, e falava num telefonizinho pedindo socorro, mas ninguém veio, mas quem veria de tão longe para salvar um avião que já estava caído?

Algumas horas depois vieram os bombeiros, e carregaram os nossos corpos para autópsia. O que aconteceu depois disso já não lembro, as imagens me apareciam em vultos e tudo era estranho, eu não sabia que estava morto, só percebi a minha inconsciência, quando o caixão com o meu corpo descia para as profundezas, onde há trevas e silêncio.

Este texto que agora vós ledes é fruto dessa minha inconsciência para com a morte, se eu soubesse que estava morto me limitaria a escrever pois bem sei que os mortos não escrevem e nem lêem. Hoje quando ando pela rua ninguém me vê, se bem que já não ando na rua, talvez como fantasma, mas também como posso ser fantasma, se não creio em fantasmas? Eu prefiro viver repleto de filosofias, milhões delas, escreve-las e pô-las em livros pintados com tinta. E se algum dia eu vier a ter consciência da morte terei inventado tantas filosofias que depois do meu desaparecimento serei lembrado como um génio dessa futilidade necessária que se chama literatura. 

(J.Int)
Autor: Almirante Cossa

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