Pequeno Diário de um Morto
No último
voo da minha vida, não sabia que era o último, por isso voei não sabendo que
morreria naquele dia. A subida do avião foi tranquila, nada de estranho se
suspeitava que aconteceria, o piloto, o co-piloto e as assistentes de bordo,
todos estavam no ponto.
O piloto era
um semi-velho barbudo, que pelo seu respirar dava para perceber que já estava
acostumado a fazer voos de longa duração, principalmente para as Antilhas. O
co-piloto era um jovem moreno, que não era branco, negro, e muito menos mulato,
ele era ele mesmo, de uma raça solta como os cães vira latas que ululam pelas
cidades periféricas buscando os ossos de cada dia que o homem na sua
ingenuidade deita nos contentores de lixo. As assistentes de bordo eram algumas
moças lindas, os nomes delas não me estão nas clareiras da mente, mas elas eram
finas e dengosas, dava prazer ouvi-las pronunciar qualquer palavra em qualquer
língua, mas a pena de tudo isto é que elas estavam marcadas para morrer naquele
voo comigo.
O céu estava
nublado, e as gotículas de chuva iam subindo amorosamente pelo corpo negro da
terra, e foi neste cenário de tempestade pobre, que o avião subiu rumo a minha
morte. A subida foi tranquila, o monstro metálico aos poucos ganhava
consistência no centro da gravidade. Enquanto o avião subia tive a sensação de
ser um pássaro, aliás! não tive sensação de ser pássaro coisa nenhuma, mas
imaginei a liberdade que os pássaros sentem quando voam, infelizmente essa
minha raça de homem só sabe voar a electricidade, a mecânica e a todas essas
coisas como vapor que teve o seu primeiro suspiro na revolução industrial.
Eu estava
sentado na classe executiva, embora não lembrasse que tivera posses em vida,
talvez fora um empresário de sucesso, um cantor, sei lá, mas creio que era
alguma coisa útil quando estava vivo, porque só pessoas úteis sentam na classe
executiva a bordo de uma embraer 99. O corpo chovediço de lá fora, fumegava as
janelitas da aeronave, depois de uma ampla solidão a chuva se fez acompanhada
de trovoadazinhas, que foram crescendo, crescendo, como cresce um feto no
ventre da mulher, e aquele crescer e começar era o princípio e o fim de mim. Foi
depois disto que uma pequena turbulência se fez primeiro miúda, depois mulher,
e o início do pânico. O comandante tentava controlar os passageiros, que na
verdade nem existiam, eu estava só, com o piloto, o co-piloto e as minhas
lindíssimas assistentes de bordo. O grito era meu e delas, nossas vozes se
entrecruzavam numa paixão obscena, nossos corpos se juntavam no medo do
tranquilo silêncio que se chama morte.
O avião caia
em reflexos lentos, no meu pânico, brindei comigo mesmo o meu último suspiro. Das
janelitas do avião vi o sol se despedido de mim, embora chovendo, além do sol
vi os rostos de meus amigos e de todos meus familiares, e uma lágrima desceu
dos meus olhos e o fim dela já não sei. A medida que o avião ia caindo mais
pena tinha das minhas assistentes de bordo, tão lindas e ao mesmo tempo tão
mortas. No meio do trajecto da queda, nem um grito, nem um suspiro, acabei me
conformando com o destino que Deus me concedera nesse dia. As últimas palavras
que ouvi, eram do piloto que buscava coragem de sei lá onde, e falava num
telefonizinho pedindo socorro, mas ninguém veio, mas quem veria de tão longe
para salvar um avião que já estava caído?
Algumas
horas depois vieram os bombeiros, e carregaram os nossos corpos para autópsia. O
que aconteceu depois disso já não lembro, as imagens me apareciam em vultos e
tudo era estranho, eu não sabia que estava morto, só percebi a minha
inconsciência, quando o caixão com o meu corpo descia para as profundezas, onde
há trevas e silêncio.
Este texto
que agora vós ledes é fruto dessa minha inconsciência para com a morte, se eu
soubesse que estava morto me limitaria a escrever pois bem sei que os mortos
não escrevem e nem lêem. Hoje quando ando pela rua ninguém me vê, se bem que já
não ando na rua, talvez como fantasma, mas também como posso ser fantasma, se
não creio em fantasmas? Eu prefiro viver repleto de filosofias, milhões delas,
escreve-las e pô-las em livros pintados com tinta. E se algum dia eu vier a ter
consciência da morte terei inventado tantas filosofias que depois do meu
desaparecimento serei lembrado como um génio dessa futilidade necessária que se
chama literatura.
(J.Int)
Autor: Almirante Cossa
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