quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Literatura - Crítica Literária



Edição de Livros em Moçambique: um ''Bicho sem Cabeça''

Como diz Miguel Unamuno, ler muito é um dos caminhos para a originalidade; uma pessoa é tão mais original e peculiar quanto mais conhecer o que disseram os outros. Estas invulgares faculdades que a leitura nos proporciona são tão possíveis quanto mais LIVROS lemos. Certa vez afirmou Charles Elliot, livros são os mais silenciosos e constantes amigos; os mais acessíveis e sábios conselheiros; e os mais pacientes professores. 
O livro é, indubitavelmente, das maiores criações da humanidade. Ele conserva conhecimentos, antigos e novos saberes. O livro salvou para a posteridade o “espólio” da Antiguidade. De uma importância incontestável, o livro que nos chega a mão é apenas o ângulo mais saliente de um produto que irrompe depois de cumpridas sinuosas, desgastantes e dispendiosas etapas ao longo da sua gestação.

Numa proposta de discussão incomum na arena do debate académico e/ou profissional em Moçambique, a Universidade Pedagógica, através da Faculdade de Ciências da Comunicação e de Linguagem, organizou uma mesa redonda com editores e livreiros, sob o tema desafio da edição de livros em Moçambique

Foi de resto uma viagem discursória a volta de uma temática que está(va) longe de constar da agenda do debate académico nacional e que juntou docentes da UP, estudantes de Jornalismo e Estudos Editorias e um painel composto por Nelson Saute, da Editora Malambique, Ana Vasta, coordenadora Editorial da Plural Editores, Elsa Silva, da Minerva e Angelina Comé, da Editora Educar.

Discutir o papel do editor – para alguns um ser estranho, um ser incompreendido na conjugação para a produção do livro – no contexto moçambicano; falar dos canais de produção e de distribuição do livro adivinhavam-se missões monstruosamente complicadas, mas industriavam os presentes a expectativa de um encontro que se fizesse prolífico. E lá nós, os interlocutores, entravamos em utopias para no instante imediatamente a seguir cairmos na distopia. Orientavámo-nos pelo ideal para, sem muito esforço, lembrarmo-nos da sua impraticabilidade.

Nelson Saute, escritor e editor – exímio conhecedor dos trilhos de produção e distribuição do livro – num tom discursivo profundo e desembaraçado, porém pedagógico, encontra o editor como aquele que “faz escolhas importantes de intervenção numa sociedade, numa cultura; dá forma e vida ao livro”. Parafraseando o unívoco objectivo do mundo editorial, “um editor tem de trazer um livro de qualidade”. 

Este adeptismo do editor pela excelência do produto, porém, nem sempre é percebido pelo autor, como, incredulamente, protestou Saute. “Normalmente os autores quando nos procuram, fazem-no com trabalhos já prontos e paginados, querendo a chancela de uma casa editorial e muitas vezes não percebem qual é o papel do editor. Os nossos autores guiam-se por uma tradição muito ‘prima-dona’ em relação aos seus textos e não percebem que contando com um olhar crítico do editor podem beneficiar bastante. O autor, por mais consagrado que seja, às vezes falha em alguma coisa. Há uma ilusão de autoria”.

O editor sabe que se edita o livro não para o caderno de cultura, nem para os cadernos literários, mas sim para o público leitor. Quem, decerto, tem este como o seu modus operandi é, de novo, Nelson Saute, que se declara apaixonado pela tradição anglo-saxónica, tanto que ele intervém e discute amplamente o original com o autor. Talvez por isso ele só publique os clássicos, como aliás o afiançou. Até porque os clássicos não se tornam clássicos ao acaso, merecem atenção especial.

Na literatura, por exemplo, hoje raream aventuras literárias ousadas como as de José Craverinha, Noémia de Sousa, Mia Couto. Não espanta, por isso – tal como certa vez disse o escritor Mario Vargas – que a literatura mais representativa da nossa época seja light, leve, fácil que sem menor rubor se propõe, sobretudo, a divertir.

Diz ainda Vargas que a literatura light dá ao leitor e ao espectador a cômoda impressão de que é culto, revolucionário, moderno, de que está na vanguarda, com um mínimo esforço intelectual. Desse modo, essa cultura que se pretende avançada, de ruptura, na verdade propaga o conformismo através de suas piores manifestações: a complacência e a autossatisfação. 

Mas porque o livro que hoje nos referimos não responde àquela obra de arte que: atravessa os séculos; é objecto de uma cultura desinteressada; não responde à nenhuma utilidade funcional e não dá lugar a um processo de consumo, a que a filósofa alemã Hannah Arendt se referiu, este orienta-se mais pela lógica do mercado, relegando a um plano menos decisivo a criação e a espiritualidade artísticas. Disseram repitidas vezes alguns saudosistas da literatura clássica, presentes no encontro.

Um mercado livreiro, no entanto, que parece inexistente em Moçambique. Uma das mais bem posicionadas editoras do país e especializada em edição do livro escolar, a Plural Editores, representada pela sua coordenadora editorial, Ana Vasta, reclamou da injustiça do mercado do livro, acentuando a insustentabilidade do livro enquanto bem económico. “Estamos no mercado porque gostamos de editar livros. O que nos suporta aqui em Moçambique é a empresa mãe (Porto Editora) ou do contrário já teríamos encerrado as portas”.

Como se de uma orquestra se tratasse, o discurso, plangente e por vezes desesperante, obedecia a uma uniformidade de estilo e de conteúdo irrepetíveis. Eu, esbugalhado, ouvidos aguçados e expectante em ver o alinhamento discursivo a tomar uma direcção optimista, resolvi desfazer-me das minhas utopias e, finalmente, ative-me a mensagem simples e contundente que se me havia sido transmitida desde o instante inicial: “o mercado editorial em Moçambique é uma quimera”. Não haveria, pois, uma (re)confirmação mais lúcida como o pronunciamento da Angelina Come, representante da Editora Educar, dedicada a edição de livros científicos: “a nossa editora tem experimentado inúmeras dificuldades financeiras e não conseguimos, por conta disto, publicar regularmente. É muito pouco o que nós já fizemos até aqui”.

Mas também aprendi lá, com aqueles painelistas, doutos em matérias da edição, que o sucesso de um livro, e por extensão das editoras, pode, sobremaneira, ser determinado pelas livrarias. A livraria é muito importante como propagadora da cultura e incentivadora de acções que criam novos leitores em larga escala. Elsa Silva, da livraria Minerva, domina os ciclos da comercialização do livro. Ela “orgulha-se” por a Minerva conseguir responder à procura, resultante da boa relação que mantém com as empresas editoras nacionais e internacionais. O namoro com o leitor-cliente ganha destaque maior na sua tradicional feira anual do livro, onde este chega a estar a metade do preço, permitindo que a vários leitores seja possível adquiri-lo.


Há-de ter sido encontrado, talvez, um dos culpados para a dita “marginalização” do livro e da decadência da actividade editorial deste bem. A ausência do jornalismo cultural. E bem na plateia, estava uma elegível. Hermínia Machel, jornalista cultural da Televisão Pública, que também reclama da ditadura do jornalismo político e económico em prejuízo do cultural. 

É como, nostalgicamente, disse Nelson Saúte: “em tempos tínhamos um ambiente indutor do amor ao livro, do amor à literatura. Hoje falta o jornalista cultural, aquele que anuncia a obra, que a critica, que forma o leitor. O noticiário cultural está empobrecido, e a vida do editor torna-se cada vez mais difícil, sobretudo para aquele que pretende buscar mercado, formar público e intervir socialmente”. 

Eu também, como tudo o resto presente na palestra, não auguro “felicidades” ao mercado de edição de livros em Moçambique, salvo se o Estado adoptar uma política de incentivo à leitura e ao uso das bibliotecas como locais de propagação da cultura, sabedoria e aprendizagem. Como disse Neil Gaiman “não privilegiar uma biblioteca é silenciar o passado e prejudicar o futuro. É negar a importância da plena formação do ser humano como indivíduo livre, crítico e pensante”. Este Estado devia ser o maior comprador das obras dos autores nacionais. 

E aprendi, no final, uma nova licção: “um bom editor deve ser também um bom entendedor de marketing. Aquele que consegue combinar o dualismo ‘livro como produção artístico-espiritual e como um bem económico sustentável”.          

(J.Int)
Autor :Renildo Braz
  
     



Citação extraída no artigo de Cândido Oliveira Martins: Elogio do Livro e da Leitura

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